Serpentes de bronze no culto cristão
Estou
lendo “Igreja Simples – retornando ao processo de Deus para fazer discípulos”
(Editora Palavra, Brasília, 2011). O livro é fruto de uma pesquisa que concluiu
o seguinte: igrejas saudáveis são igrejas com um programa simples de
discipulado. Ao contrário, igrejas “doentes” são congestionadas, complicadas,
sobrecarregadas com inúmeros programas e eventos.
Os autores usam o exemplo de Ezequias para desafiar a igreja de hoje a fazer
uma reforma de volta à simplicidade.
A Reforma de Ezequias
O rei Ezequias trouxe o povo de Deus de volta ao Senhor através de uma grande
reforma. Ele removeu os “lugares altos”, os postes-ídolos, e jogou fora
entulhos de deuses que competia pela atenção do povo (II Rs 18:4).
Até aí tudo bem. No entanto, Ezequias fez algo radical, que muitos líderes de
igreja teriam dificuldade de fazer hoje. Ele destruiu a serpente de bronze de
Moisés. Uma serpente moldada pelo grande líder histórico, feita por ordem do
próprio Deus.
A princípio, a serpente tinha utilidade: ela representava a salvação para as
pessoas mordidas pelas cobras venenosas (Nm 21: 6-8). Mas a praga das serpentes
passou, aquela estátua foi guardada, e passou a ser idolatrada.
Como surgem as serpentes de bronze
O processo funciona assim: alguém bem intencionado introduz um elemento no
culto ou na vida religiosa. A princípio, aquilo é útil, faz sentido e abençoa
vidas. Mas as circunstâncias mudam e o que era útil se torna um estorvo sem
sentido. Com o tempo, aquela “relíquia sagrada” passa a ter virtude em si
mesma, e torna-se objeto de veneração. Pronto: aí está mais uma serpente de
bronze intocável.
Ezequias se livrou da serpente porque se tornara um entulho; as pessoas
passaram a adorá-la, desviando a atenção do Salvador real. O que era algo bom
se tornara um ídolo. Em muitas igrejas, coisas originalmente criados para dar
vida podem se tornar entulhos. Programas, rotinas e métodos se tornam um fim em
si mesmos. Mantê-los passa a ser objetivo maior, ainda não haja mais utilidade
ou sentido.
Para Ezequias, eliminar a serpente de bronze talvez não tenha sido uma decisão
popular, especialmente em meio a religiosos fincados no tradicionalismo. Assim
também, reformas profundas em meio ao povo de Deus são difíceis. Mas o ato de
Ezequias agradou a Deus, pois não houve rei como ele nem antes nem depois (II
Rs 18:5). As igrejas necessitam de Ezequias modernos que não temam eliminar o
desnecessário, o que desvia o foco, o que se tornou uma barreira para a
adoração a Deus.
Os
bem-intencionados defensores de serpentes
Você
consegue imaginar quantas reuniões de comissão seriam necessárias para acabar
com a serpente de bronze hoje? Você consegue ouvir os argumentos dos
mantenedores da serpente?
“Isso
sempre esteve aí! Por que mudar agora?”
“Quem você pensa que é para retirar algo que Moisés colocou?”
“Isso faz parte de nossa história, de nossa ‘identidade’”
“Você é jovem, e não sabe o significado dessa serpente sagrada!”
Essas pessoas são movidas por nobres sentimentos e motivos aparentemente
razoáveis. Mas quando confrontamos as “serpentes” com o objetivo principal da
igreja, vemos claramente que elas se tornaram obstáculos.
Hoje, comissões se reúnem para discutir e votar o número de cadeiras na
plataforma, a cor do terno dos diáconos e tantos outros temas menores! De
acordo com o Manual da Igreja, as comissões administrativas da igreja
devem ter como item primário a obra de “planejar e promover o evangelismo em
todos os seus aspectos”. E tudo o que não contribui para o objetivo, desvia o
foco.
Não faz muito tempo ouvi uma discussão antes de participar de uma Santa Ceia. O
tema era: devemos manter aquele ritual de lavar as mãos dos oficiantes? Naquele
dia, os pães já estavam todos partidos e ninguém tocaria neles. Mas os anciãos
acharam melhor manter o ritual “faz-de-conta” de lavar as mãos dos oficiantes,
porque “sempre foi assim”.
E mais recentemente, soube de uma comissão que se reuniu às pressas para
discutir um tema importantíssimo: a retirada do púlpito durante um evangelismo
na igreja! A equipe de evangelismo queria a plataforma sem púlpito e sem
cadeiras, mas os líderes da igreja não concordaram com isso, e seguiu-se um
longo e acalorado debate.
Perdemos muito tempo com as serpentes de bronze. Elas tomam nosso tempo, nossa
energia e nossos recursos. Não somos curadores de museu, somos testemunhas do
Deus vivo num mundo dinâmico. A igreja é um bote salva-vidas num mar revolto,
um pronto-socorro em plena atividade, não um “CTG* adventista”. Reunimos-nos
semanalmente por vários motivos nobres, mas esses motivos não incluem o “manter
a serpente de bronze” sacralizando formas.
Criando
novas serpentes
O problema não se refere apenas a coisas antigas. Somos tentados a criar novas
serpentes a cada nova geração. A cultura moderna da “promoção de eventos” é um
exemplo disso.
Existem eventos na igreja que são bem intencionados, mas completamente fora de
foco. Todos se dedicam exaustivamente ao evento, e, ao final, o objetivo
principal não é alcançado – percebe-se que aquilo contribuiu pouco ou quase
nada para a missão da igreja.
Cria-se uma espécie de competição interna: “O Acampamento de Jovens desse
ano foi ótimo, o do ano que vem tem que superar!” Então, a coisa se torna
cada vez mais complicada, grandiosa, exibicionista... e ai de quem ousar tocar
nessa nova serpente! Se no próximo evento não houver o mesmo formato
pirotécnico e helicópteros sobrevoando, será um “fracasso”.
E, para sacralizar a nova serpente, lançamos mão do discurso espiritual: “foi
uma bênção!” Ainda que não tenha sido bênção e não tenha contribuído em nada
para o Reino de Deus.
Descongestionando
o culto
Uma
liturgia complexa, um culto complicado, são sintomas de fraqueza. "À
medida que aumenta em pompa, a religião declina em eficácia" (Educação,
77).
Ellen White alerta que “a formalidade tem tomado o lugar do poder, e sua
simplicidade se perdeu numa rotina de cerimônias.” (Evangelismo, 293) E
ela revela um fenômeno que ocorre no culto: “As cerimônias tornam-se numerosas
e extravagantes, quando se perdem os princípios vitais do reino de Deus.” (Evangelismo,
511)
A história do povo de Deus mostra que as cerimônias e rituais se multiplicam à
medida que as pessoas se afastam do Senhor (ver Ellen White, O desejado de
todas as nações, 29; O grande conflito, 55). Em suma, um culto
complicado é mau sinal.
O Manual da Igreja Adventista diz: “Não prescrevemos uma fórmula ou
ordem específica para o culto público. Em geral, uma ordem de culto breve ajusta-se
melhor ao verdadeiro espírito de adoração. Devem-se evitar longos
preliminares.” Além disso, o mesmo Manual traz duas formas sugestivas de culto,
e não liturgias inflexíveis. Uma dessas formas é a breve.
Se você já experimentou sugerir adaptações e mudanças na liturgia, certamente
já percebeu inúmeras serpentes, antigas, tradicionais, mas totalmente
complicadas, inúteis e sem sentido. O culto torna-se sem sentido quando trai o
seu papel de conduzir o povo a Deus e à vida. O culto torna-se sem sentido
quando, para mantê-lo, oprimimos, sufocamos e dividimos os adoradores.
O culto se torna sem sentido quando, para combater o culto epicurista-hedonista,
promovemos o culto estóico-sofrido, onde o conforto, a objetividade, a beleza
artística e o prazer são considerados inimigos da espiritualidade. Então, como
a opinião do adorador pouco importa, soterramos a adoração sob entulhos
litúrgicos destituídos de significado. E quando o adorador reclama, colocamos a
culpa na sua suposta falta de “espiritualidade” e repetimos infinitamente que o
culto é “para Deus, não para você” (apesar do sermão e de boa parte das músicas
e hinos serem direcionado às pessoas...).
Resumindo os princípios da simplicidade e da objetividade, Ellen White
escreveu: “As formalidades e cerimônias não devem ocupar tempo e energias que
devam por direito ser dedicados a assuntos mais essenciais.” (Conselhos aos
Professores, Pais e Estudantes, 270).
Não há virtude em acumular cerimônias e tornar o culto longo e sofrido. A
espiritualidade do culto não é medida pelo grau de descontentamento e
desconforto das pessoas. Precisamos promover uma reforma, retornando à
simplicidade e à objetividade no culto, sem “serpentes de bronze”.
“Quando os professos cristãos alcançam a alta norma que é seu privilégio
alcançar, a simplicidade de Cristo será mantida em todo o seu culto. As formas,
cerimônias e realizações musicais não são a força da igreja.” (Evangelismo,
512)
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(*Os Centros de Tradição Gaúcha são sociedades que visam ao resgate e à
preservação dos costumes tradicionais dos gaúchos. É uma bela iniciativa
cultural tradicionalista, mas que não serve de modelo para o funcionamento de
uma igreja cristã.)
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